Wednesday, November 22, 2006

O RETRATO DA DESGRAÇA HUMANA / URBANA

Eu odeio falar sobre esse tipo de coisa. Prefiro falar sobre o amor ou sobre as dores.
Hoje não consegui me conter. Estava chegando em casa e há alguns quarteirões do meu portão, encontrei duas crianças revirando o lixo. Uma delas estava comendo algo que pegava e dava o resto (do resto) para a outra menor.
Eu não consegui parar porque havia um carro atrás e tive que seguir. Porém, guardei o carro e esperei alguns minutos pois os dois estavam fazendo a ronda da rua. Quando se aproximaram eu perguntei onde moravam e tímidos e com medo responderam. Pedi para que esperassem e que não mexessem no lixo.
Voltei com dois lanches e uma sacolinha com alguns alimentos. Eu não havia almoçado ainda e já eram umas duas horas da tarde e, com certeza, eu também beliscaria alguma coisa. Não tive intervalo na escola, saí de uma aula para outra e não houve tempo para almoçar.
Mas há uma diferença. Eu não pude almoçar por falta de tempo. Eles não puderam almoçar por falta de comida.
Não estou contando tudo isto para que pensem "Nossa, como ela é boazinha", me senti terrivelmente mal por poder fazer apenas isto. Entreguei a sacola e os lanches, eles agradeceram e foram embora.
Só isso. Duas crianças.
Eu precisava escrever. Está doendo. Eu sempre escuto sobre a fome e a miséria, eu dou aulas em escolas pobres também, mas nunca tinha visto ninguém comer LIXO.
Como alguém pode fazer parte do sistema de um país e desviar dinheiro sem ter peso na consciência?
Demagogia? Talvez. Mas a imagem da criança, do lixo e tudo isto na minha frente me chocou. Eu não sou perfeita, sou humana, erro, porém, para não se sensibilizar com isto precisa ser sujo, nojento e cruel.
Outro dia, um aluno meu falou que o pai bateu na mãe dele com um ferro e que passa o dia bebendo e não trabalha.
Em seguida, eu tenho que ensiná-lo sobre análise sintática. Mas tive que esperar um pouco até na hora do intervalo para que ele comesse, pois estava com muita fome.
"Professora, eu não consigo pensar, meu estômago está doendo..."
Talvez eu esteja revoltada hoje. Talvez. Hoje eu sentei na mesa, comi e um nó ainda continua na minha garganta. Uma amiga me disse para não me importar senão fico louca. Mas não é uma chave que se desliga e pronto! Não penso mais. Sei que não posso consertar o mundo mas não se importar me remete à sujeira.
Eu não posso fazer nada. Isso me deprime. Quem pode?
Eu dei uma caneta de várias cores para esse aluno. Ele ficou muito feliz. Disse que só tinha uma bic.
Eu expliquei que agora ele poderia colorir o caderno. Que só ele pode fazer isso.
Na nossa vida somente nós mesmos podemos colorí-la. Nós escolhemos as cores que acompanharão nossos dias. Ele poderá pintar seus dias para que sejam diferentes dos dias de seu pai.
Ele entendeu e sorriu.
"Professora, eu gosto da escola. Nâo gosto de ficar em casa. Eu gosto da senhora."
Eu só consegui desarrumar seu boné (eu deixo ele usar boné na minha aula) e sorri.
"Eu também gosto de você".
Às vezes, não consigo ensinar o que é análise sintática e nem se o certo é com "X" ou "CH".
Muitas vezes tento ensiná-los o que é RESPEITO.
Quem sabe possam ensinar a outras pessoas. Quem sabe alguém possa acreditar que essas crianças merecem respeito. Que o professor merece respeito.
Renato Russo cantou muito bem "Que país é esse?"........gostaria que um dia isto mudasse e que ninguém mais cantasse "É a porra do Brasil".
Desculpem o desabafo.
http://drikaflor.zip.ne

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